23/10 - Tiranë
Pronto, agora finalmente eu cheguei longe demais. Longe não é um conceito geográfico, neste particular pretendo fazer ainda mais bonito. Mas um outro tipo de longe, de ir se afastando daquilo que é familiar, ir dando tapas cada vez maiores na precariedade, meio como dar sucessivos tecos na orelha de seu gato até a hora em que ele perde a paciência e crava as unhas na sua córnea em sinal de protesto.
Albânia. A verruga da hemorróida do cu da Europa, aquilo que até há uns 30 anos era só o comunismo mais feroz e a nação mais miserável e atrasada do continente, e agora é apenas um país periférico, pobre, subdesenvolvido, confuso, caótico, o mais favelão de todos pelos quais passei. Agora bati no fundo do poço, e daqui pra frente o caminho é pra cima.
A primeira impressão da Albânia foi surpreendentemente positiva, ao passarmos por uma cidadezinha bonitinha pelo caminho, Shkoder, que parecia humilde mas limpinha, arborizada, interessante, ao menos vista pela janela do businho. Imaginei que Tirana, então, seria uma surpresa ainda mais grata. Expectativa frustrada, a cidade é grande, desorganizada, gotejante de poluição visual e até mesmo humana, com multidões se trombando pelas calçadas, imagino que Calcutá seja mais ou menos assim, só que com mais coliformes fecais na água.
Também não tem tanta coisa assim para fazer ou ver por aqui, mas é o lugar mais barato da viagem até o momento, e, quase emocinanante, a postura dos locais é radicalmente oposta à dos eslavos e germânicos com os quais cruzei até o momento. Mesmo, como frequente, sem falar uma palavras de inglês, todos têm se mostrado prestativos para além de qualquer razoabilidade e em pelo menos em duas ocasiões, se não fosse pela ajuda espontaneamente oferecida ao nos verem com aquela cara de turista bobão meio desesperado, simplesmente não teríamos conseguido solucionar a dificuldade: o hotel (ou seja, mais um quartinho em casa de família) simplesmente não existe no lugar indicado nos aplicativos de mapa, e sim numa vielinha de uma quebrada de uma ruela que nem mapeada está. E então um sujeito nos vê na rua, oferece ajuda, telefona com o próprio celular para o local, descobre onde fica, sai de seu caminho para nos levar até lá perto, e a dona do local vai à rua nos buscar na ponta do quarteirão. Não cobrou a diária por não falar inglês algum e não ter sabido como gesticular o pedido, mas dá vontade de não ser espertão e pagar espontaneamente, o que farei amanhã, com prazer.
O mesmo na hora de comprar ingressos para a ópera. Um balcãozinho escondido nos fundos de um teatro completamente fechado nos é efusivamente indicado por uma mulher que também estava procurando comprar seu ingresso, e nos ajudou na comunicação com a senhorinha sorridente que estava lá a vendê-los.
Método de quarto mundo de vender lugares: o mapa de assentos ocupados são três folhas de papel sulfite coladas, nas quais os assentos vendidos vão sendo ticados, e os ingressos saem de um carnê em cujas folhas a tia anota dia, e número do assento, antes de destacar. Desinformatização radical total radiante! E todos os lugares têm o mesmo preço.
Então, à noite, programa cabeça! Die Fledermaus. Eu esperava menos. Ópera clássica é aquela coisa desapontadora, um texto fraquinho e melodias e acompanhamento instrumental meios amorfos pra acompanhar o que está sendo cantado. Verdi é insuportável, Wagner é nauseante, e achei que Strauss o seguiria de perto. Mas a música tem alguma personalidade, a montagem dá de brinde também farta dose de ballet, tudo posto agradou bem mais do que a Don Giovanni que vi na Ópera de Sydney, mas ainda passa longe da The Death of Kinghoffer que vi no Met. E sim, tô soando metido pra cacete. Mais um dia insuportavelmente quente de castigo pra mim amanhã.
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